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DEUS, O DIABO E O TREKKEIRO NA TERRA DO SOL PDF Imprimir E-mail
Seção: Trekking - Categoria: Geral
Escrito por Jorge Soto   
Qui, 07 de Maio de 2009 23:18
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DEUS, O DIABO E O TREKKEIRO NA TERRA DO SOL
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                                       DEUS, O DIABO E O TREKKEIRO NA TERRA DO SOL

                                                                                                         por Jorge Soto

Dia e meio de viagem de incessante sacolejo por empoeiradas e precárias estradas de terra foram necessários pra chegar ate Monte Santo, arraial localizado nos cafundós do sertão norte baiano. Monte Santo??? Pois é, a 1ª vista mais uma vila perdida em meio à ressequida caatinga conhecida apenas pela romaria local ao alto do morro homônimo, local místico da região. Entretanto, poucos sabem q em 1963 este pacato local teve sua rotina drasticamente mudada p/ servir de cenário p/ clássico "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha. Desta forma e como sou fã assumido de filmes sobre o cangaço, esta curta e oportuna passagem pela cidade bastou p/ subir o "Caminho de Sta Cruz", seguir algumas pegadas do aclamado diretor e tentar compreender os "porquês" do sertão ser o principal personagem de sua celebrada ópera sertaneja.

 Saltei do busao no arremedo de "rodoviária" em meio ao breu da meia-noite, p/ ser abordado pelo único taxista ávido por algum turista, raros na cidade. Romeiros são + comuns. Declinei da oferta e me pus a andar rumo ao centrao, aos pés da Serra do Piquiriçá, majestuosamente silhuetada pelo céu estrelado. Não havia alma viva à vista, e o jeito foi buscar algum canto p/ encostar a barraca. Contudo, a qtdade industrial de vira-latas nada amigáveis da vila tornou esta tarefa um tanto dificil; tentei me acomodar num loteamento, mas logo fui enxotado por estridentes latidos. Idem perto da rodoviária, num terreno baldio, onde fui confundido c/ mendigo. Por fim, após zanzar todo arraial justo buscando descanso e discrição, cabei armando minha "choupana" em meio aos arbustos do jardim da praça central, diante da igreja; ironicamente, s/ sinal dos pulguentos. E a noite transcorreu agradável c/ temperatura amena, embora qq som próximo me fizesse ter o sono interrompido inúmeras vezes.


Levantei antes q amanhecesse, quase 5:30hrs, ainda resmungando pelo resquício de noite mal-dormida. Me dirigi entao ao sopé das escadarias q palmilham o morro, enqto surgiam primeiros sinais de movimentação e burburinho pela cidade; assim como a incipiente luminosidade matinal dissipava as sombras permitindo avistar os contornos mais nítidos da Serra do Piquiriçá, única elevação destes rincões retilíneos do sertão. No alto do morro, a Capela de Sta Cruz destoa como um pontinho branco dos tons ocres da montanha. Pros romeiros, o "Caminho de Santa Cruz" é "pernada" obrigatória de 3km de extensão e 550m de altitude, na qual os penitentes atribuem milagres e graças alcançadas. Dizem q alguns enfrentam a via sacra de pés descalços ou c/ rituais de auto-imolação p/ ampliar o sofrimento. Da minha parte não havia promessa alguma a ser paga, apenas curiosidade em seguir a tradição à minha maneira; ampliei meu calvário subindo não c/ o fardo de uma cruz nos ombros mas sim c/ uma pesada cargueira de quase 15kg nas costas.
O tempo ameno daquele horario permite um começo de subida tranqüilo, embora seja o trecho + íngreme, composto de degraus irregulares em meio a uma muretinha, q impede q gdes e espinhentos arbustos invadam a escadaria. O caminho, construído no séc. 18 c/ pedras dispostas artesanalmente, tem seu charme especial e é impossível não pensar imediatamente numa espécie de "Trilha Inca do Sertão", ate pq depois escadaria é modo de falar. O q resta é apenas uma rampa pavimentada c/ pedras irregulares alternada c/ degraus num canto e noutro da obra feita por beatos. No caso, 25 capelas dispostas ao largo de td percurso, cada uma c/ algum significado litúrgico.
Pouco depois, o caminho vira p/ esquerda e o terreno arrefece em suave aclive, tornando a pernada menos desgastante. Ando sem pressa alguma, apreciando a mudança drástica de vegetação deste  trecho. Os gdes e verdejantes arbustos ao pé da serra cedem lugar a uma paisagem mais desoladora, e a leve brisa matinal faz um rebuliço no monte de pé-de-pau q cobre a serra: cactos, pequenos mandacarus, juremas, aroeiras e umbuzeiros ressequidos se misturam à algum lixo, principalmente sobras de rojões de fogos de artificio. Sim, aqui tb há farofa e respeito algum nem por vias sacras. Uma breve pausa p/ retomada de fôlego é necessária, assim como já se tem um belo visual do qto já se subiu desde a cidade, ao mesmo tempo q o sol comeca a estender seus raios sobre a paisagem da planura do sertão.

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Nova curva, agora pra direita, subindo a crista da serra ate o fim em terreno relativamente plano. Minhas costas estão empapadas de suor, mas ainda assim mantenho meu ritmo de ascensão constante. No caminho, cruzo c/ um senhor e seu filho q sobem o morro como exercício matinal, programa típico dali. "Ta pagando promessa c/ seu para-quedas?", me pergunta. Respondo q de certa forma, sim. Após metade do trajeto sou brindado, alem do belo visu, com uma refrescante brisa q alivia meu semblante ofegante. Os horizontes se ampliam consideravelmente e, num penoso e extenuante esforço, subo os últimos degraus daquele caminho sacro, ate finalmente alcançar o alto do Morro do Monte Santo, quase uma hora após galgar o primeiro degrau daquela escadaria interminável. Largo minha mochila na ultima capela e dou um rápido visu na bela Igreja de Sta Cruz, q nomina o caminho, por sua vez criado justamente pela sua semelhança com o calvário de Jerusalém. A igreja esta trancada, mas pela janela consigo ver o q deve ser a Sala dos Milagres, onde dezenas de velas, tulhas de ex-votos de madeira e recibos de promessas cumprida se juntam à cera derretida em novelos presos a barbantes, forrando as paredes. Assim, tomo meu merecido café-da-manha sentado numa muretinha de pedregulhos, enqto chegam jovens em trajes de ginástica, se alongarem, pra em seguida retornarem escadaria abaixo. A paisagem daqui é mto bonita. Assim como Glauber, q subiu o morro afim de buscar locações p/ seu filme, acompanhei o sol se firmar sobre a horizontalidade da vasta planicie de tons monocromáticos ocre-acizentados q se estende ate onde a vista alcança, pipocada por pequenos espelhos d'agua de açudes, refletindo um ceu azul intenso e isento de nuvens. Ao longe, avistam-se os lajedos bege-claros sem fim onde foi rodada a cena do monólogo de Corisco. La embaixo, a cidade em miniatura se espraia e a igreja matriz, diminuída, parece caber na pta do dedo começando mais um novo dia.
Mas o tempo urge e é hora de descer. Logo o sol vai começar a açoitar a pele s/ dó, e o vento carregar uma "quentura" q mais parece o "bafo do demo", como dizem aqui. Fazer este caminho à tarde é tecnicamente impossível devido ao calor sufocante, a menos q se seja um bode ou um calango. Daí q qq incursão ao topo é feita nas primeiras horas da manha (ou final da tarde), já q as romarias praticamente são feitas à noite. Na descida, o movimento aumenta de tiazinhas e tiozinhos em sentido contrario, q olham c/ curiosidade o meu "para-quedas". Fico imaginando o formigueiro humano q ali deve se tornar na Semana Santa.

Assim vou perdendo altitude aos poucos, enqto atento c/ cautela aos degraus irregulares e trechos mais íngremes do caminho, e em menos de meia hr estou outra vez ao pé da serra, respirando aliviado. Me dirijo a um boteco do lado da pca central, onde as 8hrs - pelas informações colhidas - parava condução rumo Euclides da Cunha, e dali prosseguir minha jornada sertão adentro. Enqto aguardava conversei c/ a simpática atendente do bar, q me contou q ali td mundo tinha um velho parente ou conhecido q havia "aparecido" no filme e q guardava boas recordações daquele ano em q "fazer figuracao era a atividade mais bem paga naquelas bandas". E não é pra menos, o clima hostil e o solo agreste continuam os mesmos, permitindo uma fonte de renda limitada, qdo dá; restam pequenas roças de subsistência de milho, mamona, feijão, sisal, criação de bodes, trabalho temporário em gdes fazendas, q alem de deter açudes permanentes se encarregam de grilar o resto de terra q sobra, etc. S/ mencionar nos ônibus lotados de "Severinos" q partem diariamente rumo as gdes metrópoles na busca de vida melhor, sendo q metade deles retornam, desiludidos. Nesse contexto de pobreza, resta o consolo na fé, na devoção e no fervor religioso, q aqui sim são o ópio do povo. Os anos se passaram e a embalagem da cidade pode ter mudado, mas sua essência continua a mesma. Isto é, a imensurável fé sertaneja e os infortúnios do homem nordestino continuam sendo dignamente retratados no filme de Glauber. Agora compreendo seu status de "clássico" do cinema nacional. Da mesma forma, existem peregrinações de vários tipos, de cunho religioso, histórico, ecológico, filosófico, etc. Uma visita a Monte Santo e seu "Caminho da Sta Cruz" preenche estes três primeiros quesitos. Só assim percebe-se q o sertão, c/ sua dramática e triste sina de sol e seca, pouco mudou desde seus dias de grandeza cinematográfica.

Jorge Soto
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
 
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