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SAUDADES DO MATÃO PDF Imprimir E-mail
Seção: Montanha
Escrito por Mario Soares   
Sáb, 21 de Março de 2009 20:35
Índice do Artigo
SAUDADES DO MATÃO
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Por Mario Soares Foto arquivo Web

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Pico do Papagaio fonte Web

Aproveito esse espaço que o Brasil Vertical concede aos “normais”, para contar uma aventura que eu vivenciei junto com meus primos, na fazenda de nossos tios, perto do Pico do Papagaio, em Minas Gerais.

Quando éramos crianças, eu e meus primos, passávamos as férias de inverno nesta fazenda, que era para nós uma terra cheia de aventuras e mistérios. Na fazenda, nossos parentes que lá viviam, eram para nós, referência de uma outra vida possível e maravilhosa e apoiavam toda e qualquer idéia que tivéssemos. Acampavamos, andavamos a cavalo, pescavamos, nadavamos nos riachos, fazíamos longas caminhadas e comíamos verdadeiros banquetes e o que era melhor, todos os dias que lá estivéssemos.

Um dos locais preferidos por nós, era a Pedra Preta, que ficava numa parte alta de onde avistávamos a sede da fazenda. A pedra ficava no meio da mata e era coberta de vegetação e tinha uma faixa de 10 metros de largura limpa de vegetação, que ia até o topo. Os primeiros 10m de altura era levemente deitada para traz, lisa e úmida, pois o sol não a alcançava, por causa das árvores, o resto da parede era vertical e só no final ela deitava um pouco. Naquele local fazíamos nosso acampamento preferido e o desejo de subir aquela pedra, sempre se revelava a cada acampamento e já havíamos tentado por todos os lados, mas a vegetação, musgo, limo e umidade, não permitiam e para nós era como uma missão incompleta.

Passei uns anos sem ir, devido aos estudos e a outros compromissos e em 1990, voltei novamente, para encontrar meus primos e rever meus parentes que lá vivem, eu tinha 17 anos, e meus primos, Gustavo e Julio, tinham 17 e 16 anos respectivamente.

Cheguei na fazenda dois dias antes deles e ansiosamente os esperava, Gustavo estudava no Rio de janeiro e Julio morava em São Paulo; por telefone, Gustavo me contara que tinha uma surpresa para nós e que só me revelaria quando chegasse.

A chegada deles foi uma festa, com um enorme café da manhã e entre muitas conversa perguntei a Gustavo sobre a surpresa e um sorriso enorme apareceu na sua cara e respondeu que estava no carro. Fomos todos para fora para ver a tal surpresa, do porta malas do carro ele tira um enorme saco de lona e derruba no chão seu conteúdo. Ficamos ali sem entender do que se tratava, eram cordas e pedaços de ferro variados, mas com o mesmo sorriso ele disse: agora subimos a pedra.

Imediatamente nosso interesse fora ao mais alto nível, inclusive por nossos parentes que lá moravam. Conforme meu primo dava nome aquilo tudo que estava no chão, eles começavam a brilhar e rapidamente já estávamos totalmente envolvidos com aquela conversa e a aventura que ia rapidamente se revelando a nossa frente.

O conteúdo do saco agora era chamado de equipamento e era constituído de uma corda de bombeiro com 40m, grossa e dura, com cara de muito usada, (imaginávamos que a pedra tivesse uns 35 metros de altura e os seus 40 m eram suficientes), 10 mosquetões, oito grampos os com solda horrível, 20 parafusos grossos, duas talhadeiras de pedreiro, um martelo de tirar pregos, 10 cordeletes de corda de náilon de 8mm, (agüenta 800 kg, dizia Gustavo, que garantia ter visto na loja onde a comprara essa referencia).

De dentro de uma mochila ele tira um outro pacote e como se revelasse algo, ele nos mostra um livro de montanhismo e escalada, mostrando como se praticava e com fotos e desenhos tão nítidos, que era fácil entender. Pergunto como ele havia conseguido aquilo e ele nos conta que há seis meses ele estava escalando com um pessoal e que tinha conseguido aquele material emprestado de um novo amigo. Esse passou a ser nosso único assunto e todos nós da fazenda passamos a nos envolver com o “assunto de subir a pedra”.

No outro dia às 5 horas da manhã, acordamos com a pilha toda e com um farnel de quitutes, fomos para base da pedra, puxando um burro que levava o peso para nós. Na base da pedra fomos nos ambientar com o nosso novo equipamento e com o livro, que era a nossa "Bíblia" e era folheado e refolhado; Gustavo era nossa referência, pois era o único que tinha experiência e nos explica que usaríamos aqueles parafusos para subir a primeira parte, até chegarmos no final do negativo, na altura das arvores e que amarraríamos os parafusos com um nó de prussik feitos com os cordeletes e nele colocaríamos os mosquetões, conforme Gustavo nos explicava, entendíamos tudo rapidamente, tamanha era a ânsia em começar a empreitada, estava tudo explicado e entendido, fizemos dois estribos de corda, as cadeirinhas também de cordas, como ensinava o livro.

Começamos a furar a pedra; nas primeiras marteladas a pedra nem marcou, nos olhamos com olhares incentivadores e voltamos a martelar e nos revezando, levamos mais de 2 horas para fazer o primeiro furo e então bati o parafuso que não entrou todo, ficamos com medo de continuar e após vários testes que fizemos dependurando-nos os três no parafuso, constatamos que ele tava firme; Gustavo se prendeu com o mosquetão no cordelete e com ajuda do estribo tentou bater o próximo grampo, furou um tempo e desceu, pois estava com vários vergões nas pernas, causados pela cadeirinha de corda, era minha vez e com uma bermuda grossa sobre as calças, para não me machucar com a cadeirinha, furei mais um pouco e meus braços se acabaram e minhas pernas estavam sendo cortadas pela cadeirinha; desci e o Julio sobe e com a língua de fora, fura até achar que o buraco tava bom e decide colocar o parafuso, assim mesmo o parafuso não entra até onde queríamos e cheio de receio, Julio amara a corda e desce. Fazemos nosso teste padrão, nos dependuramos novamente para testar sua segurança e o parafuso resiste aos três. Levamos novamente mais de 2hs para colocar este parafuso.

Gustavo recuperado e com duas bermudas encima da calça, sobe novamente para tentar furar o mais alto possível desta vez, já que parafuso que fora batido por último não passara de 80cm de distância do anterior; sobe alto nos estribos e começa o furo à 1m aproximadamente do último, mal consegue marcar a rocha e pára pra descansar e assim 2 horas e meia depois e várias subidas e decidas, terminamos o terceiro buraco que não foi furado até o fim e mesmo assim colocamos mais um parafuso que não entrou como queríamos, testamos novamente, nos dependurando os três na corda.

O primeiro dia acabara e fora tudo que conseguimos fazer, colocar três parafusos, o pessoal da fazenda, aparece no final do dia para ver nosso serviço e voltamos com eles para casa, cansados. Vimos que teríamos muito trabalho pela frente e mesmo antes de chegar em casa, meu tio já tinha uma idéia para amenizar as dores da cadeirinha, era fazer um balancim de pintor, para sentarmos enquanto fazíamos os furos e que foi feito ainda de noite, em frente ao fogão de lenha entre muitos causos. Cheios de ânimos prometemos colocar o restante até o final do negativo no outro dia. Na hora do banho, vimos os vergões no corpo feito pela cadeirinha de cordas, tudo doía e ardia.

Comemos com loucos, a deliciosa comida mineira de roça e fomos dormir cedo, e também muito cedo estávamos despertos, com o corpo todo doido e radiante por voltarmos para a labuta, rapidamente estávamos prontos para sair; juntamos os "trem", comida e água em dobro encima do burro que parecia estar feliz com a idéia também, a carga era leve e ele ganhava o resto do dia de folga.

De volta ao nosso "trabalho”, Julio era o cara da vez, ele tinha que fazer sozinho aquele furo, não podíamos revezar mais, cada um de nós tinha essa obrigação dali em diante. Julio após 1:30hs, finalmente coloca o parafuso e para variar só entra até a metade e muito próximo do outro. Julio desce com dores em todo o corpo, apesar do conforto que o balancim nos dava. Então subo eu, com o propósito de colocar o outro rápido e alto e já nas primeiras marteladas vejo que será difícil, 1:30hs, depois, desço, também todo doido, mas com o parafuso bem colocado.

Após três dias de trabalho, com a ajuda do balancim, chegamos ao final do negativo e todos comemoramos com um laudo jantar com um bolo de milho de sobremesa. Novamente acordamos cedo e cheios de energia e quase correndo, saímos em direção à pedra que ficava a uns 500m da sede da fazenda. Agora a parede era em pé e lisa, ou melhor, nossos tênis de passeio, não aderiam à rocha e já estavam furados e puídos com a empreitada; colocamos os dois primeiros grampos muito perto um do outro. A altura, agora acima das arvores,  era um ambiente muito solitário e nos sentíamos num ambiente novo.

Na vez de Gustavo ele consegue escalar 1m e coloca o parafuso há mais de dois metros de distância, apoiado em enormes agarras, o que foi para nós, motivo de comemoração. Julio coloca o próximo grampo, a um 1,5m de distância do último e eu consigo colocar a uns 80cm. Depois disso, quanto mais subíamos mais perto colocávamos os grampos.

Após uma semana, de uma batalha sem precedentes, terminamos o serviço e estávamos aos berros, os três, encima da pedra, soltamos foguetes e meus parentes estavam nos vendo da sede da fazenda respondendo com foguetes. À noite a festa foi até tarde e todos nós, incluindo o pessoal da fazenda, de uma certa maneira, éramos vitoriosos.

Este foi o último inverno que passamos lá, os três juntos. A vida, os estudos e o trabalho nos levaram para longe e para fora do Brasil, eu moro no Canadá, Gustavo na Argentina e Julio é na Irlanda.

Hoje sabemos que Gustavo tinha descoberto as escaladas só alguns meses antes da nossa aventura e não tinha escalado mais que quatro vias facílimas até então e o suposto equipamento de escalada que ele trouxera, ele tinha emprestado de um amigo desavisado, assim como o livro, que por sinal hoje, cada um tem um exemplar.
Essa experiência foi muito importante para nós, deixando marcas positivas em nossas vidas, tudo isso ficou gravado para sempre e passados todos estes anos ainda escalamos, de uma forma bastante modesta, mas sempre que possível.

Ano passado conseguimos nos reunir, os três na fazenda, após 17 anos, de nossa única experiência como conquistadores, a fazenda ainda pertence a nossa família. Já no primeiro dia em que chegamos, fomos brincar com os filhos do Gustavo na Pedra Preta e hoje, apesar de remexer nossas memórias, a pedra em si tem um aspecto insignificante, mas mesmo assim e com o mesmo entusiasmo, repetimos nossa escalada, com nossos equipamentos modernos e fizemos uma festa com as crianças no cume, gritamos para o pessoal da sede e rimos muito, lembrando da nossa aventura. Pela primeira vez pudemos avaliar nosso feito e finalmente colocarmos um nome na via.

Ela foi batizada de "Saudades do Matão” III grau ou A0, 20mts.
 
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