Após mais de um ano sem repetições, os escaladores Felipe Uzum e Davi Caetano escalaram a mítica via Cães e Caravanas semana passada e certamente fizeram uma escalada linda e desafiadora, aonde o comprometimento foi fundamental.
Escalamos há cerca de 3 anos e não queríamos atravessar a linha tênue que separa a diversão e a segurança, mas sabíamos que cada vez mais nossos planos nos cobrava comprometimento.
Na escalada muitas vezes dizemos que uma via necessita comprometimento quando a margem de erro se torna pequena. Muitas vezes não podemos cair, ou não podemos demorar, ou não podemos levar coisas de mais, ou de menos. Mas o termo comprometimento ganha novos significados, muitas vezes abstratos, conforme vamos entrando em vias desconhecidas e pouco repetidas.
Eis que no domingo, conforme combinado, acordamos cedo e rumamos para o Restaurante do Bau. Subimos a trilha compartilhando espectativas e informações, responsabilidades e equipamentos. Decidimos entrar na via direto pelo Platô MSP, pulando a primeira cordada. Assim evitaríamos entrar na via errada. Rapelamos da parada da
Transbaú no Plato dos Medrosos, nos equipamos e olhamos para cima. A via começa numa laca que forma uma fenda. Depois da laca havia uma chapa, ainda bem acima. Decídimos que eu guiaria a primeira enfiada. Calcei as sapatilhas e comecei a escalada.
Dentre as informações que havíamos colhido havia um
vídeo onde um rapaz tomava um queda bem grande escalando essa cordada. Eu entrei protegendo bem pela laca esperando o lance da queda. Costurei na primeira chapa e as agarras foram rareando. Os pés ficavam cada vez menores mas não havia sequer como olhar para baixo. o Uzum, fazendo minha segurança, apenas observava. Por mais que formássemos uma dupla e estivéssemos unidos pelas pontas da corda, eram meus ossos que se chocariam contra o platô em caso de queda e a concentração era ingrediente essencial. Então consegui chegar à parada e um sorriso tomou o lugar da tensão, sempre frequente no começo da escalada.
Então veio o Uzum limpando a via e entrou na segunda cordada. Um lance mais difícil do que eu havia passado, com um crux de pequenos regletes e poucos pés, porém melhor protegido.
Numa escalada como essa a dificuldade e a exposição no caso de uma queda se permutam e temos que sempre estar atentos as suas nuances. A escalada da via vai nos levando a um estado em que sabemos como nossos braços e nossa mente devem trabalhar em sintonia e vamos crescendo conforme vamos escalando.
Escalei de segundo a enfiada e cheguei a parada crente do desafio vindouro: "O muro". A inclinação da via aumentava e sabíamos que ali seria o lance mais difícil tecnicamente. O grau segerido, 8B, não nos dava muita margem e, apesar dos buracos de clif para passar em artificial, sabíamos que ali poderia terminar nossa jornada, pois não dominávamos a tecnica desses equipamentos.
Saí então para enfrentar o crux. Fui pegando nas pequenas agarras e observando os buracos de clif, percebendo que eu sequer havia pegado eles na mochila que havia ficado com o Uzum. Após um lance esticado observei duas lacas a esquerda. Joguei o corpo, segurei a de baixo e consegui esticar a mão até o de cima. Subi o pé numa agarra boa e mais um lance esticado até uma agarra boa para a mão direita. Vi então que a parede ficava lisa e, bem acima, havia um possível agarra para a mão esquerda. Subi o pé, me joguei até ela e vi que era possível ficar, mas caí. Tentei outra vez, nada. Mais uma, nada. Então olhei para baixo e o Uzum me perguntou se eu queria os clifs. Eu disse pra ele que não. Tentei outra vez, e fiquei. Fui subindo o corpo, peguei numa mão direita afiada que cortava os dedos, mas fui subindo, sabendo que cada passo acima me deixava mais longe da última chapa. Então dominei um mini platô e segui para a parada. Ufa.
Passar por um lance difícil na escalada nos trás moral e infla o ego. As vezes podemos pensar que somos grandes escaladores e o pior é achar que podemos escalar mais do que nossa capacidade. Cada lance passado deve ser encarado como único, fácil ou difícil. Na escalada não podemos olhar para baixo. Apenas o próximo lance que nos interessa e é para ele que devemos olhar.
Então o Uzum veio atrás e chegamos ao lances que tanto discutíamos enquanto estudamos a via: as travessias. As quedas nas travessias, ainda mais nas expostas, são perigosas porque há um sério risco, quando caímos pendulando, de a corda pegar numa laca e ser cortada. A grande dica que tínhamos conosco era tentar atravessar por baixo para diminuir a queda.
Fui guiando essa cordada e passei logo pela travessia Duloren, entrando em dois lances técnicos de 7A e 7B em sequência.
Subi então por um platô chegando abaixo de um diedro lindo, o famoso diedro da via Bito Meyer. Com apenas uma chapa ali, montei uma parade mista e o Uzum veio na sequência.
Olhamos para a esquerda do diedro e vimos a próxima enfiada. Era a travessia "Ixtlan". No croqui há a seguinte nota: +- 20m Expo Rocha podre. Nenhuma chapa durante a travessia. A pedra parecia cream cracker, de tão quebradiça que era. Olhamos algumas vezes para o lance e não acreditávamos no que viámos. Resolvemos almoçar para tentar abstrair o restante da escalada. Olhamos a paisagem e fizemos as contas de quantos rapéis nos deixariam a salvo no chão.
É certo que quando escalamos uma via pela primeira vez grande parte da emoção vem da descoberta do que, ao menos para nós, era o novo. Precisamos de coragem para encarar o novo, senão corremos o risco de tornar a escalada uma rotina. Decidimos que entraríamos para aquele mundo e eu iria na frente. Aliás, essa decisão não mudava muito as coisas, pois cair de primeiro ou de segundo naquela travessia era igualmente problemático. Comecei a tentar pegar as agarras de cima para baixo ao invés de puxá-las para fora, na tentativa vã de mantê-las intactas. Percebi que somente meus pés poderiam me dar a firmeza necessária e tentei ao máximo sentir a rocha através da borracha milimétrica que nos separava. Após alguns metros vi um grande buraco na altura da minha cabeça que consegui proteger com um friend e segui em frente, até chegar a chapa, do outro lado de Ixtlan. Nessa chapa até paramos para uma foto. Subi um pouco mais sobre a rocha podre, onde ficava a parada.
O Uzum então veio, não acreditando nas agarras que teimavam em cair, uma após a outra, como se a rocha, símbolo do imutável, se desfizesse para sempre na nossa frente, com o simples toque de nossas mãos.
Na parada, fizemos um pequeno filme, tiramos fotos, olhamos ao redor. Tínhamos o sentimento de ter passado por um lance difícil, mas era mais. Seguimos pela via, em que o Uzum guiou o "Teto Amarelo" em articial, uma enfiada das mais bonitas que fizemos, mas Ixtlan havia ficado em nós. A enfiada tinha uma grande necessidade de comprometimento, mas era um outro tipo de comprometimento. Era daquele tipo de comprometimento que precisamos fazer algo com ele, que precisamos decidir que nossas vidas não podem mais ser costuradas do retalho do nosso tempo. Terminamos a via e sabíamos que não éramos os mesmos. Planejamos uma escalada e acabamos por fazer uma viagem.