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CONQUISTA EM SOLITÁRIO NA PEDRA DO BAÚ - VIA AMANITA MATUTINA ( A3 7a E3) PDF Imprimir E-mail
Seção: Escalada
Escrito por Bito Meyer   
Qua, 03 de Novembro de 2010 20:19

CONQUISTA EM SOLITÁRIO NA PEDRA DO BAÚ    VIA AMANITA MATUTINA  ( A3 7a E3)

Escutando as pedras...

todo equipo usado na escalada embaixo do teto do ba

A via, batizada como Amanita Matutina, foi recentemente aberta por Bito Meyer,  renomado e experiente escalador, uma lenda viva do montanhismo Sul Americano, e a graduação sugerida é A3 7a E3. Na foto acima todo o equipamento utilizado na escalada pendurado na parede.

 

traado via amanita matutina a3 7a e3 por bito meyer pedra do ba

 Há alguns anos que eu queria abrir uma via em solitário na Pedra do Baú e eu já tinha visto e traçado o itinerário.  Finalmente surgiu a oportunidade de poder fazer isso e planejei uma estadia de quase um mês bivacando na Face Norte do Bauzão. Para viver 20 e poucos dias de bivac e sozinho, eu tive que subir primeiro tudo o que eu precisaria carregar muito ferro, alimentos e água (que corresponde a 3 litros "mínimos" para passar um dia e com economia) e tudo isso se traduz em peso e mais peso.  Não é a toa que, nesse sobe e desce, acabei quebrando dois pares de bengalas que uso para caminhar. Subi para o meu acampamento no meio de Agosto e desci o acampamento quase no final de Setembro.

Karininha Filgueiras me ajudou a levar um dos carregamentos até meu bivac. Karina é um tratorzinho (para ser delicado), com um mochilão nas costas, ela tem a mesma agilidade de um bode montanhês saltitando pelas rochas e uma disposição de fazer inveja. Naquele dia, ficamos arrumando o acampamento e admirando as paredes ao nosso redor e no final da tarde ela desceu, pois estava indo para a Europa escalar e eu finalmente terminaria meu projeto.

auto retrato bito olhando para o incio da viaAssim que o silêncio ficou alto é que percebi que estava sozinho, uma sensação de bem estar enche meu peito, adoro isso, conheço essa sensação há anos; estava no lugar e nas condições que eu queria estar, sabia que estava começando mais um período de hibernação; que eu me proporcionava de tempo em tempo:_ o silencio, ficar sem falar por vários dias, me escutar, tudo isso é muito loco, muito bom... é  a melhor definição para a palavra "comungar".

tive que transportar um volume maior de água, pois o calor e a seca eram terríveis; para nós que estamos sempre do lado de fora era evidente que o sol estava estranho, sua cor, sua luz, a maneira que torrava as coisas ao meu redor, me faziam ter cuidado em me proteger.  Não choveu nenhum dia e em alguns dias, ficava tão quente que quase impossível escalar.

O trabalho de abrir vias é o mais verdadeiro "trabalho braçal" que possa existir, voce faz força o dia inteiro e em solitário, voce faz o triplo de força, é preciso muito humor e charme e também é preciso saber que mesmo em solitário, voce esta bem acompanhado. Escalar em solitário já é um trampo extra, abrir vias em solitário, defina-se como "trabalho forçado não remunerado e auto imposto" e dependendo da técnica usada, muito mais trampo ainda.

Escalar por lugares que ninguém conhece e dar segurança a voce mesmo, adivinhar antes, de quanta corda  vai precisar antes de sair para fazer o trecho a sua frente, saber antecipadamente qual o equipamento que pode ou vai precisar, tudo isso é uma tarefa complexa e delicada, porque você vai jogar de forma intima, com a "exposição" e com sua sinceridade.  Quanto mais exposto, quando menos proteção, maior a queda e maior o risco de um acidente.

sombra na parede do ba auto retrato do bitoO fato de eu querer abrir uma via em solitário, não me dá o direito de fazer com que a via seja um espelho de meus medos e da minha falta de conhecimento, mas me dá o direito de pensar na "merda" que vou me meter antes de começar e que, depois de começado é como estar sozinho num salão cheio de pares dançando; só resta abraçar seu próprio corpinho, deitar a cabeça no seu próprio ombrinho, fazer cara de feliz e seguir o ritmo.

Neste tipo de escalada, ou melhor, de situação, a organização é o segredo e a antecipação é sua melhor arma, também é necessária uma boa dose de desprendimento, afinal você está sozinho e quanto mais longe do seu ultimo seguro, mais "só" você fica e se cair, cairá sempre alguns metros a mais do que se estivesse assegurado por alguém.

Já usei todos os métodos possíveis para me assegurar em solitário e acabei optando por métodos antigos e seguros, que são rápidos e eficientes. Eu não uso nenhum aparelho para me assegurar, às vezes a queda pode ser maior que estando com um aparelho para se auto-assegurar, mas tenho mais liberdade para me mover e nunca corro o risco de faltar corda para concluir uma seqüência de movimentos.

Uma queda com conseqüências graves em solitário é um momento a ser pensado,  tem que estar preparado para ele, pode ser que um osso que saia 30 cm do seu corpo ou ao cair se chocar com a parede e passar um tempo desmaiado ou outra "merda" do tipo. Saber o que esta fazendo, conhecer as técnicas e mais que tudo, saber que você terá que se auto resgatar e cuidar de você, até conseguir ajuda (e ela ira demorar...) É preciso pensar sobre isso antes de arriscar.

As técnicas de escalada e também as técnicas verticais são muito fáceis de ser apreendidas em pouco tempo qualquer pessoa pode dominá-las, as dificuldades só aparecem a partir de um determinado ponto da evolução, até aí é quase um processo natural e é possível fazer montanhismo e escalada de excelente nível em qualquer parte do mundo. A partir daí, deste ponto, tanto o montanhista como o escalador partem para suas necessidades pessoais de acordo com suas preferências, talentos e possibilidades, e também de acordo com as influencias do meio onde vive ou se relaciona. O resultado disso tudo, aparece na sua "relação com a arte", deixando uma assinatura, um retrato, do que absorveram nesta relação.

auto retrato bito pendurado na parde cidade de so bento no valePara um velho cozido de rockandroll (53anos), até que eu dou um caldo, um caldo de osso, mas temperando bem, desce.  Provavelmente sou o escalador com o maior numero de vias bivacs, no conjunto da Pedra do Baú, tanto acompanhado, quanto em solitário, fiz mais de 40 bivacs sozinho e junto com Karina, temos cerca de 70 bivacs no Baú e com certeza Karininha é a escaladora do estado de São Paulo (tem "pessoas" que gostam de separar as pessoas por Estados, raças e nacionalidades, aqui no caso cito o Estado de São Paulo, "só pra tirar onda"), com o maior número de conquistas, no Baú e região e juntos formamos a dupla com o maior número de vias da região. Quem me conhece sabe que eu abomino esses títulos que tentam separar um macaco do outro, mas confesso que tem alguns que são bem divertidos. Nestes últimos três anos; por vários momentos o Baú se tornou nossa casa, onde recebemos varias pessoas na nossa imensa sala de estar e vimos muitos turistas subindo o Baú, desfrutando da vida e gritando...huhu!

Esses lugares naturais, exercem uma função fundamental na mente das pessoas, despertam em nós sentimentos que nos unem ao planeta e nos dão a idéia, da possibilidade de ser verdade, que todos nós somos realmente, um. Não e toa que os índios e os povos antigos reconheciam que esses lugares tinham poderes e se relacionavam com eles com respeito e admiração.

guanchos usados para segurana e progresso na escaladaÉ assim que o Baú cumpre sua "função existencial", que é proporcionar as pessoas, um momento de exaltação e plenitude. Esses lugares pertencem ao povo por direito natural, constituído pelo fato de termos nascido(não vou nem falar dos impostos pagos). As únicas pessoas que não vimos no Baú, foram os Marqueteiros, os Faz de Conta, os Panças, as Cumadres e os Cumpadres do climbing.

Neste período que estive no Baú, sozinho, abri novas vias e terminei outras que eu já havia começado e os últimos dias de minha estadia no Baú, eu reservei para entrar na via que tanto queria.  Imaginei uma via, da base da Face Norte, até o cume, cruzando a parede mais proeminente e aérea do Baú e em seis dias de trabalho, com algum descanso pelo meio, cheguei ao cume, exatamente na hora que o sol estava se pondo; depois de um dia longo e trabalhoso.

Após 4 horas de rapel no escuro (pois eu esqueci a lanterna no bivac) estava sentado na base da parede, no meu acampamento de tantos dias, com uma enorme caneca de café na mão, completamente exausto e realizado, envolto pelo silêncio e pela escuridão da noite...

Assim nasceu, a "Amanita Matutina"...que transparente cortina... ao meu redor.

Bito Meyer

São Bento do Sapucaí - SP

 

 

 

traçado da via Amanita Matutina
 
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